Nossa reverência, in memorian, ao Mestre Luiz de Júlia - O Mestre Sapateiro
Ele nasceu Luiz Barbosa da Silva, no dia 07 de julho de 1922, seus pais eram Julia Barbosa da Silva e Rodolfo Pereira de Morais. Seu pai era casado com outra mulher e Luiz só foi registrado aos 15 anos, passando a chamar-se Luiz Pereira de Morais. Ficou conhecido como Luiz de Júlia porque os colegas de futebol chegavam em sua casa procurando por “Luiz de Julia”.
Quando criança não teve muito tempo para brincar. Iniciou seus estudos com Dona Zefinha, uma professora que morava na Rua da Cruz, próximo à antiga cadeia. Certo dia a professora pediu uma lição e o menino não respondeu e, por isso, ela resolveu bater nele com uma palmatória. Revoltado com a punição, não voltou mais à casa de dona Zefinha.
Algum tempo depois se matriculou na Escola Phelipe Camarão, primeira escola de Ceará-Mirim, mandada construir pelo Barão de Ceará-Mirim, Manoel Varela do Nascimento, em 1872. Lá estudavam meninos ricos e pobres. Alguns meninos ricos gostavam de bater em um garoto chamado Chico. Luiz não gostava e tomava as dores do amigo saindo aos bofetes com os outros. Como era alto, os meninos o temiam. Aprendeu a ler quando tinha 15 anos. Depois abandonou os estudos.
Desde muito cedo gostava de futebol. Nasceu com ele. Comandava uma cambada de meninos e andava em todos os povoados de Ceará-Mirim para jogar bola. Lembrou das vezes que saiam à pé até a fazenda Betânia. No caminho existia uma caieira, local onde se fabricava a cal, era de Antônio Fernandes. Lá existia uma bodega e era parada obrigatória para comer brote com guaraná. Os meninos ficavam felizes e não existia malquerença.
No ano de 1943, Aos 21 anos casou-se com Maria de Lourdes, ela estava com 14 anos. Por conta da idade, cônego Celso Cicco não queria fazer o casamento, mas, de tanto insistir, terminou cedendo. Casou somente no religioso depois do pároco pedir autorização ao bispo. Desse casamento teve cinco filhos. Após nove anos a relação terminou.
O jovem Luiz não perdeu tempo, como gostava muito de mulher jovem, iniciou um relacionamento com sua cunhada Niravalda, irmã da ex-esposa, na época com 13 anos. Foi uma confusão grande, cujo resultado foi roubá-la dos pais. Raptou a jovem e foi para a Vila São José em Natal. No dia seguinte procurou o usineiro Luiz Varela e seu filho Roberto Varela, e contou o que tinha feito. Marcaram para voltar a Ceará-Mirim dias depois para resolver a questão do casamento.
O chefe do cartório não queria fazer o casamento porque a menina era menor e tinha que ter o consentimento dos pais. Depois de muita conversa, o casamento foi feito. Naquela época, era costume alterar a data de nascimento das pessoas para que elas votassem e Niradalva tinha treze anos, no entanto, em seu registro de nascimento constava que tinha dezoito.
Dos dois casamentos nasceram 23 filhos e ele diz que a cada filho que nascia era uma experiência diferente, era como se o mundo fosse se alargando, os horizontes se ampliando, por isso, a vida tomava uma dimensão nova. Sempre apreciou o nascimento de menino, lembra que todos os partos acompanhou ansiosamente, das duas esposas, e, cada novo filho, era uma renovação de vida, era uma satisfação poder ver o seu retrato no retrato deles, era esse o sentimento que sentia. Nunca precisou de médico para fazer os partos, todas as vezes, eram as amigas Comadre Dorinha ou Maria Correia quem resolvia o nascimento dos filhos.
Na juventude foi muito ligado ao esporte, desde muito novo, gostava de jogar bola e, por isso, foi convidado para jogar pelo Centro Esportivo e Atlético, time de futebol criado pelos jovens irmãos Antonio Demerval e Jurandir Carvalho. Foi seu primeiro time de futebol. Naquele tempo, tinha um campinho em frente ao cemitério e era lá que jogavam futebol. Na época do Centro Esportivo e Atlético tinha como companheiros Clovis Soares, Antônio Campos, Chico Campos, Valdo Miranda, Revoredo, Antônio Potengi, Jurandir Carvalho, Djalma Correia, Acrisio Marinho entre outros.
O Náutico Futebol Clube foi fundado por Jomar Bezerra, os dois filhos de Lila, Damião Soares, Lula do Bacurau e Antonio Rodrigues, sendo este último, o primeiro presidente do clube. A chegada de Luiz no clube do Náutico foi entre 1963 e 1964. Jogou também pelo time da Usina Ilha Bela nos idos de 1951, quando foi campeão jogando contra o time de Igapó.
Quando jovem gostava muito de cultura popular e seu grande divertimento eram os pastoris e o carnaval. No passado havia muitos pastoris em Ceará-Mirim e, como não poderia ser diferente, Luiz tinha o seu Pastoril e mantinha ao lado de sua residência um barraco, medindo oito metros de comprimento por seis de largura, onde ensaiava e dançava com suas pastoras, às vezes, fazia apresentações em outros lugares, como por exemplo, no antigo cinema Rialto, do saudoso Jorge Moura.
Foi proprietário de um conhecido “butiquinho” na festa da padroeira, era o “Corvo”, um grande salão com vários compartimentos, onde os amantes da boemia se isolavam para as noitadas “privadas”. Apesar de manter o seu bar, nunca bebeu e fumou, como ele diz, a maior riqueza dada por Deus.
Sua paixão pelo carnaval começou nos idos de 1930 quando brincou no bloco da Lira coordenado por Antônio Cavalcanti, cuja sede ficava na Rua Meire e Sá. O bloco tinha que ter dois meninos no final dos cordões e, então, ele ocupou uma dessas posições. Empolgado pelas memórias, lembra e canta o hino de seu bloco: “A Lira, a Lira, a Lira, afague a Lira, na corda da Lira te farei rainha, entre as mulheres te farei rainha.”
Em 1963 criou o bloco dos “Boêmios da cidade” e fez a música que puxava os foliões: “Nós somos os boêmios aqui dessa cidade, brincamos sempre alegre ao povo admirar, com nossas fantasias pela rua a cantar, nós somos os boêmios não existe outro igual, marcando o passo, com grande emoção, morena faceira do meu coração”.
Apesar de sua senilidade não deixou de ser o eterno folião e, lá pelos idos dos anos 2005, convidou alguns amigos para brincar o carnaval e pretendia criar o bloco “A última carteira”, por isso, resolveu homenagear uma antiga paixão do tempo em que trabalhou como cambiteiro no engenho de Luiz Ferreira, uma linda cigana que conheceu no passado. Lamentou muito não conseguir juntar os amigos foliões, no entanto, criou a música para seu bloco “do Eu sozinho”: “Cigana, cigana, cigana venha ler a minha mão. Cigana, cigana, cigana se não vier não lhe dou meu coração. Cigana tu és muito linda! Cigana de minha paixão! Cigana tu és uma flor! Cigana da minha ilusão. Cigana, cigana caia no palco e venha ler a minha mão. Cigana, cigana, cigana se não vier não lhe dou meu coração.
Seus blocos de carnaval eram muito prestigiados e faziam as apresentações no largo do mercado. Ali a prefeitura montava um palanque e as agremiações carnavalescas desfilavam para as autoridades e o público presente. Quando havia premiações, o mestre Luiz sempre saia vencedor com sua trupe de foliões. Preservava pelo respeito e amizade, não havia exageros de bebidas ou desentendimentos entre os seus brincantes. Foi um tempo de muita magia e entretenimento. As pessoas esperavam o ano inteiro para, durante três dias, desfilar no bloco de Seu Luiz de Julia.
Orgulha-se de ter criado tantos blocos e ter contribuído para a cultura da cidade em que nasceu e há de morrer. Agradece a Deus por ter lhe dado tanta sabedoria para criar diversas músicas, coreografias e figuras em seus brinquedos. Levará consigo muitas lembranças de seus filhos da arte. Ficarão perpetuados em sua memória.
Com o olhar nas nuvens que passam sobre nossas cabeças, vai falando pausadamente, que nunca esqueceu nenhum filho e, também, nunca teve tristeza por eles terem ido embora. A vida é assim mesmo, diz tranquilo e sorridente, nascemos para viver e morrer.
Suas lembranças voltam ao tempo de menino quando ia ao mercado público e ajudava as senhoras a transportar suas cestas de compras, pelas quais recebia 200 réis, quantia que ajudava nas despesas de casa. Orgulha-se por isso, por ter começado a trabalhar cedo e, nunca em sua vida, ter bulido no alheio.
Trabalhou muito tempo como cortador de cana no engenho Porão, naquela época, propriedade de Maneco França, foram anos de experiências na bagaceira. Posteriormente, prestou serviços ao senhor Luiz Ferreira, trabalhando no cabo da enxada o que lhe rendia 2 contos de réis por dia. Não foi uma experiência muito agradável, o que o levou a mudar de atividade, passando a tomar conta dos burros e cambiteiros na bagaceira. Ficava lá até de madrugada quando ia para a usina. Em outra época, ajudou a fazer tijolos na olaria de Afonso Cabral próximo ao rio Ceará-Mirim.
Tem boas lembranças dos banheiros de Boa Ventura de Sá que ficavam próximo ao olheiro da estação ferroviária. Às 20 horas ia tomar banho lá e, por isso, pagava 20 centavos. Nessa época ajudou a vender água que transportava no lombo dos burros. Enchia as ancoretas de água e saia oferecendo nas portas das casas pela cidade. Diz que foi “aguadeiro” e se orgulha de nunca ter parado um dia sequer de trabalhar.
Certo dia ao chegar com os burros na rua São João, um senhor chamado Carlos Maia o chamou e disse que compraria um burro e daria pra ele trabalhar, em troca, receberia duas cargas de água todos os dias. Ficou muito feliz com aquela proposta, então, passou a trazer água doce do engenho Jericó de seu Olinto Meira e cobrava seis mil réis pela carga d’água.
Foi auxiliar de pedreiro com o mestre Manoel Marques famoso construtor de Ceará-Mirim. Ajudou a levantar muitas casas construídas pelo mestre e amigo. Lembra com muita emoção do tempo em trabalhou como ajudante de pedreiro, principalmente, quando ver as edificações que ajudou a levantar.
Quando morava na Rua Meira e Sá, chegou um velho celeiro chamado Simeão. Ele colocou uma oficina e convidou Luiz para ajudá-lo na labuta com o couro. Em pouco tempo ele aprendeu com o velho Simeão como manusear o couro no fabrico de celas, sandálias e sapatos. Era o início de sua atividade como sapateiro, profissão que exerceu até a aposentadoria depois dos 80 anos.
No período em que trabalhou como sapateiro atendeu a toda população de Ceará-Mirim, dos mais abastados aos mais pobres. Nunca se negou a fazer nenhum trabalho, mesmo para aqueles que não tivessem condições para pagar pelos serviços. Era uma arte dada por Deus e ele gostava de ajudar os mais necessitados.
Seu ofício de sapateiro ajudou a criar toda família, com dificuldade, mas, sempre com a cabeça erguida pela honestidade e força de vontade. Lembrava do tempo da eleição de Roberto Varela para prefeito da cidade nos anos 1950, quando foi contratado para fazer botinas para os eleitores daquela época. Foi um tempo de muitos serviços, as pessoas não tinham o costume de comprar sapatos novos, eles mandavam consertar e o mestre Luiz, renovava o calçado da gente de Ceará-Mirim. Foi assim por, pelo menos, duas gerações!
Deixou um legado para os filhos, dos quais, dois continuam a saga do mestre com o ofício milenar de sapateiro. É um orgulho para a cidade e exemplo de honestidade e caráter a ser seguido pelas novas gerações.
Nas reminiscências do mestre Luiz vem o tempo em que o Solar Antunes era uma casa velha alugada a João Daniel e, lá, no térreo do prédio, funcionava o café de Maria Gabriel e do outro lado uma oficina de esteira para cangalha feita de palha de carnaúba. Ele fez muitas esteiras e vendia as menores, para usar nos jumentos, por 500 Réis e as usadas nos burros mulos por 10 tostões.
Foi músico da banda de música no tempo do maestro Miguel Alves, pai de Geraldo Alves, avô de Willams professor, tocava o baixo, Bi menor. Naquele tempo tinha uma escola de música na banda e ele fez o exame com o maestro. Teve aulas com um músico chamado Zé Vicente. Quando começou não tocava nada, até que foi aprendendo e sua primeira grande participação foi nas inaugurações da Escola de Primavera, do Matadouro Público e do Motor de Luz, na administração de Luiz Varela no ano de 1935. Tocou também na década de 1950 quando recém-chegado a Ceará-Mirim, Tenente Djalma Ribeiro resgatou a Banda de Música Municipal. Foram muitas tocatas na cidade e em bailes nos clubes e residências.
A história do Mestre Luiz de Julia é, portanto, uma verdadeira lição de vida, pela sua contribuição à cultura e esporte de Ceará-Mirim, além de ser um personagem fundamental na construção socioeconômica da cidade. Suas mãos do passado ajudaram a construir o Ceará-Mirim do presente, e, certamente, seus ensinamentos contribuirão com sua descendência nas mãos do presente de seus filhos! Foi para as hostes celestiais no dia 03 de julho de 2016. Viva Mestre Luiz de Julia!!!
Fonte: Gibson Machado
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