quinta-feira, 5 de setembro de 2024

ARTIGO DO CIENTISTA SOCIAL ÍTALO DE MELO RAMALHO

Mordendo o rabo da batata ou encarcando os dentes no piso

Viver é um eterno refazer-se. É envelhecer e rejuvenescer diário, crítico e constante. Sem isso, seremos o entulho no carro-de-mão da quimera

Como os caminhos se formam? Honestamente, não tenho uma única resposta para essa indagação. Aliás, não tenho resposta alguma. Os caminhos podem se formar a partir de um estudo feito pelas engenharias, da idade moderna à contemporânea, que ocuparam os espaços com paralelepípedos e asfaltos; como também por outros/as que, remotamente, desbravaram as fronteiras (bem antes dos recursos da atualidade) com seus astrolábios e bússolas de outrora; como por aqueles/as que vieram antes das ciências, antes de tudo, que cavoucaram pela natureza em busca de uma segurança de vida e, consequentemente, alimentar e mística. Muitas são as verdades e as hipóteses. Entretanto: tudo é uma consequência do seu tempo.

Hoje, por exemplo, a conquista visa à ocupação do universo. Bilionários e Estados patrocinam e investem fortemente em pesquisas e tecnologias, que tenham como finalidade os anseios desses conquistadores por esses novos mundos. Talvez, aí, esteja presente o caráter da vaidade: olha, fulano de tal conseguiu ocupar o lado oculto da lua; sicrano conquistou o hemisfério norte de Marte; os EEUU, a China ou a Rússia chegaram à calota polar de Plutão. Mas, também, pode representar uma conquista para toda a coletividade, levando em conta o melhor da minha ingenuidade. E assim segue a construção por novos caminhos, entrelaçada à angustiante e à maravilhosa condição humana.

Entretanto, para mim, a melhor construção do caminho é quando eu me perco. Explico: aqui não está nada associado ao campo do romantismo. Pelo contrário, é uma situação bem pé no chão: real. É quando constato um tipo de situação que posso comparar à ideia de suspensão do filósofo Gilles Deleuze. A particularidade desse caso é observada em pequenos movimentos da sociedade, que servem de resposta para as minhas mais difíceis dúvidas. Pronto, agora embaralhou tudo! Vou tentar explicar melhor!

Anteontem, passando de frente a uma obra, percebi que algumas cerâmicas estavam sendo depositadas no cata-entulho. Procurando por outros objetos, além daqueles que enchiam os pequenos carros-de-mãos, dou na vista com um azulejo que estampava algo parecido com um mapa ou um pequeno caminho. De pronto, a curiosidade foi atiçada e lá fui eu montar aquele quebra-cabeça. Suspeitei que pudesse ser um segredo e que estivesse demasiadamente protegido pelo tempo da construção. Sim, tratava-se de uma casa antiga, bicentenária. Uma relíquia colonial. Recolhi o material com a ajuda da Estelita, operária da obra, que vibrava a cada junção das peças. Nos olhos da moça vi que o interesse dela aumentava a cada encaixe. Acredito que ela pensava que estávamos diante de uma valiosíssima descoberta. Quando, sem avisar, um grito atravessou as paredes: Lita, corra, vem carregar mais lixo. Deixe de vagabundagem, fia do cabrunco! Ela tentou argumentar que estava me auxiliando na montagem de um segredo. Mas não teve jeito. A simpática moça teve que voltar ao trabalho braçal.

Continuei no meio dos vasculhos a juntar os meus caquinhos. Duas, três horas depois da coleta, percebo que pouquíssimas chaves faltavam para decifrar aquele segredo. Até que um dos operários, observando a estampa do azulejo e virando para mim, disse: a vida é para morder o rabo da batata ou encarcar os dentes, doutor. Antes, pensava muito mais nos outros do que em mim. Hoje, procuro cerrar os meus caninos no meu caminho. Na minha realidade. E a minha realidade é esta: migrar para me contentar.

Fiquei assustado com a breve revelação ao instante que também encontrei a resposta para a minha dúvida: caminhar é juntar os cacos pelos caminhos e transformá-los em novos cacos que mais tarde já serão velhos novamente. É um eterno refazer-se. É um envelhecer e rejuvenescer diário, crítico e constantemente. Sem isso, seremos sempre o entulho no carro-de-mão da nossa própria quimera.

Por Ítalo de Melo Ramalho


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