terça-feira, 18 de junho de 2024

PL 1904/2024 – A PENALIZAÇÃO DO ABORTO COMO HOMICÍDIO E O DIREITO PENAL SIMBÓLICO

PL 1904/2024 – A PENALIZAÇÃO DO ABORTO COMO HOMICÍDIO E O DIREITO PENAL SIMBÓLICO

Por Gláucio Tavares Costa*

1. Introdução

Frequentemente é hasteada a bandeira no Poder Legislativo de que o incremento do punitivismo, com criação de novos tipos penais e aumento da severidade das penas criminais podem resolver os conflitos sociais. Cria-se pelo processo legislativo a ilusão de que a lei per si tem o condão de resolver complexos problemas sociais com profundas raízes na carência de políticas públicas. 

Tal fenômeno catalogado na doutrina como Direito Penal Simbólico, Simbolismo Penal, ou Direito Penal Demagogo, foi inicialmente cunhado e difundido na Alemanha na década de 1980, por nomes como Winfried Hassemer, chegando ao Brasil e nele entrando em discussão por volta da década de 1990 (SOUZA, 2021). Esta é uma das táticas políticas mais enganosas, utilizadas como instrumento de propaganda política em resposta à clamores populares baseados no senso comum.

Nesse sentido, vale exemplificar que a redação original da Lei n° 8.072/1990 listava sete tipos penais como crimes hediondos, rol que foi paulatinamente aumentando para conter atualmente doze tipificações delituosas. A propósito, o Projeto de Lei do Senado nº 204/2011 de autoria do à época senador Pedro Taques propunha inserir o crime de corrupção no catálogo de crimes hediondos (SANTOS e outros, 2018). 

É deveras questionável se na prática o agravamento das penas surte algum efeito positivo na resolução do problema da criminalidade. É que o mero aumento da severidade punitiva da lei, não garante a sua aplicação, sendo, em regra, uma onda propagandística dirigida às massas populares, consoante advertiu Santoro Filho.1

2. A penalização da prática do abortamento após a 22ª semana de gestação como homicídio

No bojo dos acalorados debates sobre a descriminalização do aborto, aquecidos pelo processamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 442 (ADPF 442) no Supremo Tribunal Federal (STF), em que se aborda a possibilidade da descriminalização da interrupção voluntária da gravidez (aborto), nas primeiras 12 semanas de gestação, foi apresentado em 17/05/2024 na Câmara Federal o Projeto de Lei n° 1.904/2024 (PL 1904), que busca equiparar as penas dos crimes de provocar aborto acima de 22 semanas de gestação ao montante da reprimenda do delito de homicídio simples de 06 a 20 anos de reclusão.

Na Quinta-feira, 12/06/2024, foi aprovado requerimento para que o PL 1904 tramite na Câmara dos Deputados em regime de urgência, o que implica na dispensa da proposta passar por comissões temáticas da Câmara, seguindo direto para o Plenário da casa legislativa (IBDFAM, 2024). Tal proposição legislativa passou a ser o principal tema da mídia, com manifestações populares contra e a favor do projeto de lei.

O PL 1.904/2024 propõe alterações em quatro artigos do Código Penal, a saber:

Art. 2º - O art.124 do Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940- Código Penal, passa a vigorar acrescido dos seguintes parágrafos:

"Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que

outrem lho provoque: 

........................................................................................…”

“§ 1 Quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código”. 

“§ 2 O juiz poderá mitigar a pena, conforme o exigirem as circunstâncias individuais de cada caso, ou poderá até mesmo deixar de aplicá-la, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária.”

 Art. 3º O art.125 do Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940- Código Penal, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único:

"Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:

 .....................................................................................…”

Parágrafo único. Quando houver viabilidade fetal, presumida gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código”.

 Art. 4º Renumere-se o parágrafo único do art.126 do Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, como parágrafo primeiro e acrescente-se o seguinte parágrafo segundo:

"Art. 126 ..............................................................”.

“§ 1º …................................................................…”

“§ 2º Quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código”.

Art. 5º O art.128 do Decreto-lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único:

"Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:

...................................................................… .........…”

“Parágrafo único. Se a gravidez resulta de estupro e houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, não se aplicará a excludente de punibilidade prevista neste artigo.

Em sua exposição de motivos, o PL 1.904/2024 sustenta que o legislador de 1940, ano da edição do Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), entendeu que o nascituro era uma pessoa, no sentido jurídico do termo, posto que os crimes de aborto está incluído no Capítulo Dos Crimes contra a Pessoa, motivo pelo qual já não seria possível entender o artigo 128 do Código Penal como atribuindo à gestante um direito ao aborto em caso de estupro. Assinala-se na exposição de motivos em comento que: “Se o nascituro é uma pessoa, como foi reconhecido pelo legislador, jamais o legislador admitiria que houvesse um direito de matar uma pessoa inocente para resolver um problema de segunda pessoa, por mais grave que fosse, causado por uma terceira pessoa.” Argumenta-se, em síntese, que a prática do aborto após a 22ª semana de gestação equipara-se ao cometimento do crime de homicídio.

3. O atual arcabouço normativo de criminalização da prática do aborto no Brasil

No Brasil a legislação permite que o aborto seja realizado apenas em casos de estupro, risco à vida da mãe ou anencefalia.2

Aborto é crime no Brasil, sendo previsto nos artigos 124 a 127 do Código Penal:

“Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento

Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: (Vide ADPF 54)

Pena - detenção, de um a três anos.

Aborto provocado por terceiro

Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:

Pena - reclusão, de três a dez anos.

Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: (Vide ADPF 54)

Pena - reclusão, de um a quatro anos.

Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência

Forma qualificada

 Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte.”

No Brasil, admite-se duas espécies de aborto legal: o terapêutico ou necessário e o sentimental ou humanitário.3 A legislação penal brasileira estabelece, por outro lado, as normas que permitem extraordinariamente o aborto:

Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: (Vide ADPF 54)

Aborto necessário

I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.”4

Por ser uma prática ilegal, há escassez de dados sobre o tema no Brasil. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), são realizados cerca de 25 milhões de abortos inseguros por ano em todo o mundo, não sendo no Brasil diferente, pelo contrário, acredita-se que essa prática e muito comum e pouco coibida em termos formais. A Pesquisa Nacional do Aborto de 2016, realizada pelo Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero e pela Universidade de Brasília (UnB) é um dos principais documentos sobre o tema no país, e mostrou que, em 2015, 503 mil mulheres fizeram um aborto no Brasil, uma média de 1.300 mulheres abortando por dia, 57 por hora (JOTA, 2022).

Interessante dado quantitativo sobre a prática de aborto no Brasil é referenciado no artigo “ADPF 442: descriminalizar para não matar”(CURZI e FERREIRA, 2023), publicado no Conjur em 22/09/2023, que menciona:

Segundo apontado por pesquisa da UnB (Universidade de Brasília) e pela Anis, a maioria das pessoas que optam por interromper a gravidez no Brasil hoje é casada, já possui filhos e professa uma religião. E estima-se que 1 milhão de procedimentos são feitos por ano no Brasil.

Apesar de contraditória, a criminalização/proibição do aborto provoca, na prática, mais abortamentos, posto que repele meninas e mulheres grávidas do sistema de saúde e assistência social, onde poderiam encontrar apoio para desistirem do aborto. Ao revés, tais mulheres em condições de vulnerabilidade são compelidas à insegurança da clandestinidade, ocasionando invariavelmente mutilações e mortes das mulheres sujeita a abortos à míngua de informação, de instrução, de atendimento médico adequado.

4. A diminuta eficácia das normas penais de repressão ao aborto

Por acontecer na imensa maioria na clandestinidade, a prática do abortamento é de dificílima repressão, relegando as normas criminais atinentes ao aborto uma eficácia diminuta. Some-se a isso o entendimento do Superior Tribunal de Justiça esboçada no Habeas Corpus n° 448.260 que considerou ilícita a prova do crime de aborto obtida pela quebra do sigilo profissional praticado pelo médico que atendeu a uma autora da conduta de abortamento. 

No caso, consoante reportado por VITAL (2023): 

“...uma mulher tentou eliminar a gravidez indesejada pela ingestão de cinco comprimidos de medicamento abortivo. Ela passou mal e precisou de em um hospital público. A médica plantonista que a atendeu ligou para a Polícia Militar e fez a denúncia.

A acusada deixou o local presa em flagrante e foi denunciada pelo artigo 124 do Código Penal…”

No julgamento do HC 448.260 na 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça em 14/03/2023, o ministro relator Antônio Saldanha Palheiro entendeu pela ilicitude das provas, eis que derivaram da quebra do sigilo médico garantido aos pacientes. 

Diferentemente das numerosas ações penais que cuidam de delitos como tráfico de drogas, roubo, homicídio, porte ilegal de armas de fogo, receptação entre tantos delitos, ações penais afetas ao crime de aborto em qualquer fase gestacional são relativamente raras. E o que se esperar de normas penais sobre abortamento acima da 22ª semana de gestação e da efetiva aplicação das penas?

4. O PL 1.904/2024 como cereja do bolo do Direito Penal Simbólico

A resposta ao questionamento supra parece ser que o campo de atuação concreto da equiparação da prática do aborto após a 22ª semana de gestação ao cometimento do crime de homicídio delimita-se a instrumento de propaganda de setores conservadores da política em face da previsível ineficácia completa da proposição legislativa do PL 1.904/2024 se esta vier a se tornar lei.

Estar-se diante pois de um dos maiores exemplos do Direito Penal Simbólico, marcado pela demagogia, como se a maior repressão penal do abortamento tivesse aptidão para resolver ou, pelo menos, atenuar o trágico fato social do abortamento, que acontece independentemente do julgamento das pessoas ou da proibição veiculada na lei positiva.

O PL 1.904/2024 apresenta-se neste contexto como a cereja do bolo do Direito Penal Simbólico brasileiro, diante da sua elevada capacidade midiática, porém de verdadeira inutilidade e inaplicabilidade na seara penal.

REFERÊNCIAS

1. BRASIL. Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em 16 de junho de 2024.

2. ___. Projeto de lei n° 1.904, de 17 de maio de 2024. Disponível em <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2434493>. Acesso em 16 de junho de 2024.

3. CONECTAS DIREITOS HUMANOS. STF vai julgar ação que pede descriminalização do aborto no Brasil até a 12ª semana de gestação. Disponível em: <https://www.conectas.org/noticias/stf-vai-julgar-acao-que-pede-descriminalizacao-do-aborto-no-brasil-ate-a-12a-semana-de-gestacao/>. Acesso em 16 de junho de 2024.

4. CURZI, Yasmin e FERREIRA, Giullia M. Thomaz. ADPF 442: descriminalizar para não matar. Consultor Jurídico, 22/09/2023. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-set-22/curzie-ferreira-adpf-442-descriminalizar-nao-matar/>. Acesso em 16 de junho de 2024.

5. INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA - IBDFAM (2024). Retrocesso: Câmara aprova urgência para PL que equipara aborto legal a homicídio. Disponível em <https://ibdfam.org.br/noticias/11929/Retrocesso%3A+C%C3%A2mara+aprova+urg%C3%AAncia+para+PL+que+equipara+aborto+legal+a+homic%C3%ADdio>. Acesso em 16 de junho de 2024.

6. JOTA. Aborto no Brasil: a legislação sobre interrupção de gravidez e os dados oficiais, 2022. Disponível em: <https://www.jota.info/jotinhas/aborto-no-brasil-a-legislacao-sobre-interrupcao-de-gravidez-e-os-dados-oficiais-17052022>. Acesso em 16 de junho de 2024.

7. MAGALHÃES, Lana. Aborto no Brasil. Toda Matéria. Disponível em: <https://www.todamateria.com.br/aborto-no-brasil/>. Acesso em 16 de junho de 2024.

8. MORAIS, Lorena Ribeiro de. A legislação sobre o aborto e seu impacto na saúde da mulher. Saúde da Mulher. Disponível em: <chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/131831/legisla%C3%A7%C3%A3o_aborto_impacto.pdf?sequence=6>. Acesso em 16 de junho de 2024.

9. PRETEL, Mariana. Breves Considerações sobe o Aborto no Brasil. OAB 148ª Subseção de

Santo Anastácio. Disponível em: <https://www.oabsp.org.br/subs/santoanastacio/institucional/artigos-publicados-no-jornal-noticias-paulistas/breves-consideracoes-sobre-o-aborto-no-brasil>. Acesso em 16 de junho de 2024.

10. SANTORO FILHO, Antônio Carlos (2016). Bases Criticas do Direito Criminal. Leme: LED, 2002 apud Simbolismo penal ambiental brasileiro. [s.l]: Âmbito Jurídico, 2016. Disponível em: <https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-penal/simbolismo-penal-ambiental-brasileiro/>. Acesso em 16 de junho de 2024.

11. SANTOS, Alexandre Candeia dos. SANTANA, Jaqueline R.. PEREIRA, Marla Luryan do Nascimento (2018). O FENÔMENO DO DIREITO PENAL SIMBÓLICO: DAS MOBILIZAÇÕES SOCIAIS ÀS SUAS DERIVAÇÕES. Revista Científica Semana Acadêmica. Fortaleza, ano MMXVIII, Nº. 000122, 08/05/2018. Disponível em: <https://semanaacademica.org.br/artigo/o-fenomeno-do-direito-penal-simbolico-das-mobilizacoes-sociais-suas-derivacoes>. Acesso em 16 de junho de 2024.

12. SOUZA, Aparecida Batista (2021). O direito penal simbólico. Migalhas de Peso. Disponível em <https://www.migalhas.com.br/depeso/355620/o-direito-penal-simbolico>. Acesso em 16 de junho de 2024.

13. VITAL, Danilo (2023). STJ tranca ação penal por aborto após denúncia feita por médica plantonista. Consulto Jurídico. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-out-08/stj-tranca-acao-penal-aborto-denuncia-feita-medica/>. Acesso em 16 de junho de 2024.

Gláucio Tavares Costa é mestrando em Direito pela Universidad Europea del Atlántico. Graduado em Farmácia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN. Analista judiciário do Tribunal de Justiça potiguar.

Um comentário:

  1. Se fosse a pena capital (não ao crime de aborto), muitos delitos seriam reduzidos. Distante disso, a pena nao se cumpre e o delito persiste. O problema, pois, não está na maior ou menor gravidade da pena, e sim na sua reiterada inaplicabilidade.

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